O encontro de 25 anos de invisibilidade com a Justiça humanizada do TRF6
Seu Joaquim
Esta pequena reportagem é dedicada àqueles que compreendem que a dignidade humana não é um privilégio, mas um direito inalienável, tal como preconiza a Constituição Federal brasileira. Ela se debruça sobre a história de Seu Joaquim, um homem que atravessou continentes e mais de duas décadas de abandono, para finalmente ter reconhecido seus direitos fundamentais através da Justiça Federal e órgãos de proteção aos direitos humanos da prefeitura de Belo Horizonte — um encontro que o salvou, ainda que sua jornada de vulnerabilidade esteja longe do fim.
O primeiro impacto ao encontrar Seu Joaquim é o alívio. Depois de mais de 25 anos vivendo nas ruas, ele agora tem um lar. Nascido em Medeiros Neto, na Bahia, perto da divisa com Minas Gerais e Espírito Santo, enfrentou diversas atribulações que o deixaram desamparado. Hoje, sua modesta casa é o palco de uma dignidade reconquistada, arrancada da invisibilidade que muitas vezes é imposta a quem vive às margens da sociedade. Uma realidade que ele viveu não só no Brasil, conforme relata:
— Dormi na rua, dormi na rua na Espanha, dormi na rua no Marrocos, dormi na rua... dormi na rua em Portugal, dormi num chiqueiro de porco viajando do Marrocos pra Portugal, peguei uma carona com um marroquino, entendeu?
Seu retorno ao Brasil aconteceu depois de conhecer uma advogada de direitos humanos francesa que atuava em Portugal — Joaquim já não se lembra do nome da mulher. Ela garantiu que ele conseguisse uma passagem de volta para a terra natal depois de inúmeras recusas do consulado brasileiro. Saiu da Praça do Rossio, na capital portuguesa, Lisboa, para um hotel, que o abrigou por cerca de cinco meses; de lá, finalmente chegou ao Brasil, preocupado que estava com a saúde da mãe que o criou, e que logo faleceu.
Apesar da carência material, ele se apega à sua saúde e à sua fé. Diz que já recebeu diversos sinais de Deus, e relata vivamente pelo menos dois encontros quando estava deitado, prestes a dormir ou já num sono profundo. Além de tudo, sabe do seu valor para a sociedade:
— Eu sou uma pessoa humilde, simples, não tenho... aquilo que muitos têm, mas o que eu tenho, eu agradeço, que é uma saúde boa. Eu vejo muitos por aí que são granfinos, barões, milionários, entendeu? E andam se arrastando. Até viver de mendigo eles vivem, entendeu? A saúde deles depende de um mendigo. E tem dinheiro! E muitos não gostam do morador de rua, né? Provocam o morador de rua, falam que morador de rua é ladrão.
O ponto de virada na vida de Seu Joaquim não foi um desejo, mas uma urgência médica que expôs como a exclusão social se torna uma barreira às vezes intransponível para acessar direitos fundamentais. Ele precisava de uma delicada operação de glaucoma nos dois olhos, um procedimento classificado como perigoso, arriscado. O veredito médico era cruel:
— Os médicos me disseram que não fazem operação na rua, eu morando em rua e nem em pousada, e nem em pensão, nem hotel. Tem que ter uma casa, a casa decente, tem que ser assim ó... [Joaquim aponta para o chão do quarto, de fato impecavelmente limpo] do jeito que tá vendo aí, tá vendo aí? Limpinha.
Foi então que Seu Joaquim, orientado pela assistente social Márcia, do Centro de Referência Para a População em Situação de Rua — Centro Pop Lagoinha —, decidiu ir atrás de seus direitos. Ele buscou o Poder Judiciário, mais especificamente a Justiça Federal, determinado a resolver a questão habitacional da Urbel, órgão da prefeitura “[...] responsável pela implementação da Política Municipal de Habitação Popular”, conforme consta no site oficial da PBH. Quando encontrou o juiz federal José Maurício Lourenço, a quem procurou para tratar de sua situação, o diálogo foi direto e enfático, demonstrando a convicção de que a Justiça devia intervir em seu favor:
— Doutor Maurício falou pra mim que não era caso dele, aí eu falei “não, é caso do senhor sim, o senhor é da Justiça, como que não é caso pro senhor, hã? É claro, é claro que é seu caso, é a Justiça, meu filho, você é o juiz. Você é o cara principal que eu preciso falar”. Aí foi batata: três meses e 19 dias pra eu entrar aqui.
Juiz federal José Maurício Lourenço e Seu Joaquim
Central de Acolhimento e o resgate de vidas
A Central de Acolhimento do Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF6), inaugurada em maio de 2025, não é apenas um prédio: é um Lar da Cidadania, concebido justamente para pessoas como Seu Joaquim. Implantada pelo Comitê Regional PopRuaJud, presta atendimento jurídico e social humanizado a pessoas em situação de rua ou em outras formas de vulnerabilidade social. O presidente do TRF6, desembargador federal Vallisney Oliveira, ressaltou que o local atua no “resgate de histórias e vidas”, acolhendo aqueles que foram esquecidos pelas políticas públicas.
O diferencial da Central, que atende a uma política prioritária estabelecida pela Resolução 425/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é a eliminação de barreiras: vestimenta, linguagem ou condições de higiene não são impedimentos para o atendimento, que conta com profissionais preparados especialmente para receber as pessoas. O espaço foi planejado para ser um lugar de escuta especializada, atenciosa e empática.
A atuação da Central é guiada por princípios vitais para o público-alvo: a dignidade da pessoa humana, o combate à discriminação e, fundamentalmente, a rejeição à criminalização da pobreza. A metodologia inclui a busca ativa do público-alvo para garantir que direitos previstos na Constituição cheguem a quem está em maior vulnerabilidade, através, por exemplo, de benefícios assistenciais, previdenciários ou de garantia de moradia.
Para Seu Joaquim, a intervenção da Justiça Federal, após o acolhimento no Centro Pop, foi célere, e o acesso à habitação, que lhe permitirá a cirurgia tão necessária, foi resolvido. A gratidão e o reconhecimento da importância dessa rede de apoio são palpáveis:
— Graças a Deus, ao juiz e à Márcia, entendeu? Senão eu não tava aqui não, meu irmão.
A vulnerabilidade que permanece
Apesar da conquista de um teto para viver com um pouco mais de segurança, a vida de Seu Joaquim ilustra como a garantia de um direito fundamental não resolve, por si só, toda a complexidade da vulnerabilidade social e econômica da sociedade brasileira. Enquanto a reportagem se desenrola, o personagem não esconde a dificuldade presente. O tom de lamento surge ao descrever sua situação atual, mesmo estando em casa:
— Agora vem a lamentação, né? A minha situação tá péssima, péssima. A carne acabou. Dinheiro pra comprar, só no dia 30.
José Maurício, que acompanhou toda a visita, questiona se o aluguel está em dia, ao que Joaquim responde:
— Graças a Deus, meu filho, graças a Deus, graças a Deus. Já fui lá na Urbel, já entreguei lá o comprovante de residência deles, já era... não tem compromisso nenhum com eles mais, agora só no mês que vem, não é?
A rede de proteção, composta pela Central de Acolhimento do TRF6 e parceiros como a Defensoria Pública da União, o Ministério Público Federal e os Centros Pop da Prefeitura de BH, é vital não apenas para garantir benefícios jurídicos, mas para manter a proteção social interinstitucional.
A história de Seu Joaquim é a prova de que a Justiça, ao sair dos prédios e caminhar até onde as pessoas estão, pode transformar vidas. Mas é também um lembrete urgente de que a luta pela cidadania plena exige muito mais do que um teto.