A Justiça tradicional por vezes é percebida como esgotada em seus mecanismos de solução razoável dos litígios, e tem enfrentado um profundo questionamento sobre sua capacidade de pacificar as relações sociais. A aplicação de uma sanção ou a resolução de um conflito pela frieza da letra da lei não garante a pacificação dos indivíduos envolvidos. Neste cenário, o seminário “Justiça Restaurativa como transformação da cultura adversarial” jogou luz no tema e provocou reflexões durante a tarde desta terça-feira, 20 de novembro, no Auditório do AFP.
Segundo o vice-presidente e corregedor regional da 6ª Região, desembargador federal Ricardo Machado Rabelo, o fortalecimento de ações que envolvam a consensualidade coloca o TRF6 no caminho correto: “Temos um compromisso de privilegiar sempre o diálogo, dar oportunidade de solucionar os conflitos que são submetidos ao nosso exame e tentar de alguma forma resolver de forma consensual. Isso é uma questão de amadurecimento da sociedade. Quando ela vai evoluindo, vai crescendo, vai se despontando como uma sociedade moderna, vê a conciliação como a melhor alternativa da solução de conflitos”.

Entretanto, a mudança de paradigma exige uma reflexão profunda sobre a estrutura vigente. O coordenador regional de Solução Adequada de Controvérsias (COJUS), desembargador federal Álvaro Ricardo de Souza Cruz, reflete sobre o alicerce do sistema judiciário tradicional: “Essencialmente, a estrutura da nossa justiça é uma estrutura de natureza liberal. Então, a gente está buscando sempre eficiência, e eficiência é produtividade, é número. E quando o jurisdicionado se torna um número, a justiça se desumaniza."
Para Álvaro Ricardo, tratar o outro como um ser humano plenamente dotados de direitos e deveres requer reconhecer sua história de vida no mundo. A Justiça Restaurativa é uma das formas de mudar a nossa cultura, inspirando-se nos modos de vida de povos originários, como os terena, e sistemas como o ubuntu: “Eu trouxe alguns exemplos aqui dos terenas, da ancestralidade dos povos originários brasileiros, aonde essa questão da restauração, em que é absolutamente necessário estabelecer conexão entre seres humanos, e isso é um resgate da ideia de alteridade, de humanidade, de empatia. Sem isso, a Justiça vai ficar só produzindo números, mas não vai produzir justiça”, finaliza o desembargador.

A Justiça Restaurativa é, portanto, vista como uma mudança de cultura na própria Justiça. Essa busca pela restauração e conexão não é uma invenção moderna; é um resgate de princípios antigos, de mecanismos que reconstituam o tecido social e organizacional, levando à paz individual e social.
Diálogo integrativo e a cura do entorno social
Enquanto o direito tradicional resolve o conflito pela aplicação de uma sanção, sem pacificar as relações, a Justiça Restaurativa propõe uma abordagem integrativa que olha o contexto como um todo. A juíza federal Fernanda Schorr explica a diferença: “Ela analisa em que lugar as pessoas estão, como elas estão ou por que elas estão lá, e por que aconteceu esse conflito. Quando ela faz isso, ela abre para ver todos os aspectos sociais que estão envolvidos e tenta, estimulando esses aspectos, aspectos sociais, resolvendo o entorno, fazer com que as duas pessoas envolvidas passem a ter um diálogo, uma conexão, olhando uma para outra, entendendo o contexto social de cada uma e como elas vivem, e passem a viver e se entender e tentar chegar num bem comum”.

A grande diferença reside na abordagem da gênese do conflito, o que impacta diretamente na sua resolução no futuro. Utilizando um exemplo do direito penal, o juiz federal Osmane Antônio dos Santos destaca a falha do processo tradicional em olhar para o histórico das pessoas: "Ninguém nasce um infrator ou um criminoso da noite para o dia, ele se torna, alguma circunstância o leva a praticar esse fato. E essas circunstâncias são simplesmente esquecidas."
Osmane afirma que o ato, seja civil ou criminal, é tratado como um “recorte fático”, uma fotografia do momento, e as informações complementares não são levadas em consideração no processo tradicional. Essa visão ignora as pessoas que estão envolvidas direta ou indiretamente: “A Justiça Restaurativa vem exatamente com essa energia, que é exatamente buscar a resolução, ouvir todas as pessoas que direta ou indiretamente, acabaram tomando conhecimento ou interferindo naquela situação”, esclarece o juiz.

A Justiça Restaurativa atua a partir do princípio de que aqueles que criaram os conflitos e que têm suas necessidades não atendidas ou seus desejos não satisfeitos são, paradoxalmente, aqueles que têm condições de resolvê-los por meio do diálogo. O ideal é que se possa resolver os conflitos através dessa comunicação.
Paz e prevenção de reincidência
Ao estimular o diálogo e a conexão, essa nova perspectiva dos sistema judiciário busca uma resposta mais produtiva e direcionada à paz do que a que tradicionalmente se consegue alcançar, com processos litigiosos. Na visão de Fernanda Schorr, ela traz paz à consciência do conflito e, ao fazer isso, impede que o conflito continue reverberando durante muito tempo nas vidas das pessoas envolvidas: “As vezes a gente vê que um conflito gera 20 processos. E a ideia é resolver as pessoas, o interno delas e o entorno, para que ele pare de reverberar e sempre tratar novos conflitos”.
Apesar de seu grande potencial transformador, Osmane pondera que a sociedade ainda não está totalmente preparada para resolver tudo através da Justiça Restaurativa, ainda que “o ideal é que a gente possa, através do diálogo, resolver nossos conflitos”.
Ainda assim, o movimento de valorização do consenso e do diálogo, evidenciado por instituições como o TRF6, sinaliza um amadurecimento social que gradualmente busca superar a cultura da sanção pela cultura da restauração, conforme aponta o diretor do Foro da 6ª Região, juiz federal José Carlos Machado Júnior: “O direito tradicional, seja o Direito Penal, seja no caso dos conflitos familiares e mesmo no caso do Direito Administrativo, parece que esgotou seus mecanismos de solução razoável dos litígios. A aplicação de uma sanção não pacifica as relações sociais, não pacifica os indivíduos que estão envolvidos. Para atender a essa demanda, buscou-se na restauração na Justiça Restaurativa, que é antiga, dos povos tradicionais, mecanismos que possam ser utilizados para possibilitar que o tecido social, o tecido organizacional, seja restaurado, de modo que as pessoas tenham paz enquanto indivíduos e enquanto sociedade”.

A Justiça Restaurativa, assim, funciona como um tecelão que, em vez de apenas cortar o fio rompido — a sanção —, trabalha para refazer o tecido social danificado, reconectando as pontas soltas da humanidade através do diálogo e da empatia.






