Entrevista
Edilson Vitorelli, desembargador federal e relator da comissão de juristas que discute o processo estrutural, fala com exclusividade ao JOTA
O Brasil vive uma realidade em que casos que atingem uma parcela considerável da população são judicializados, muitas vezes individualmente, ou mesmo em ações civis públicas que podem resolver questões regionais, mas não nacionais, do forma uniforme. São questões como as vagas em creches, a situação da população carcerária, dos indígenas isolados, dos segurados do INSS, das pessoas que precisam de medicamentos e até mesmo do combate aos incêndios. O que fazer? O texto do Anteprojeto de Lei do Processo Estrutural, em tramitação no Senado Federal, propõe o processo como ferramenta para a mitigação desse conflito.Em entrevista ao JOTA, o desembargador do Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF6) e relator da comissão de juristas responsável pelo projeto, Edilson Vitorelli, explicou por que considera a proposta a melhor solução e rebateu as principais críticas ao modelo. Vitorelli também esclareceu o entendimento de que as decisões do ministro Flávio Dino no combate aos incêndios, como a liberação de créditos extraordinários, seriam medidas com características de processos estruturais.
Isso porque, segundo Vitorelli, o que estamos vivendo hoje é uma crise, "uma situação aguda de incêndios como o Brasil nunca viveu". "O ministro Flávio Dino, então, adotou algumas decisões que, tecnicamente, são apenas decisões daquilo que chamamos de tutela provisória. Ou seja, são ordens para debelar um problema pontual, específico, circunstancial. Elas não têm nada a ver com o plano que está sendo discutido."O plano de combate aos incêndios, previsto em decisão de março deste ano na ADPF 473, este sim é estrutural, afirma. "A principal característica do processo estrutural é que ele busca se adaptar a essas situações que exigem medidas prospectivas, graduais e duradouras", diz o desembargador. A ideia é "bolar um plano e fazer uma intervenção gradual, futura e progressiva para atender aos direitos. Ou seja, para não deixar esses direitos sem nenhum atendimento, mas também para não cair na banalidade de só conceder ordens individuais a quem ajuizar a ação", pontua.Ao diretor de Conteúdo do JOTA, Felipe Recondo, e ao professor Miguel Godoy, da Universidade Federal do Paraná, Vitorelli afirma que essas intervenções individuais "prestigiam as pessoas que têm acesso à Justiça, em detrimento de quem está na fila esperando pacientemente".Um exemplo citado por ele é o caso dos segurados do INSS que buscam a Justiça. Ao acionar a Justiça, o caso do segurado que exigia análise passa à frente. "Quando fazemos isso uma vez, parece pouco, mas quando fazemos isso milhares de vezes, o que acaba acontecendo é que mudamos a ordem da fila. E a fila começa a andar para trás, porque ou eu ajuízo uma ação, ou as outras pessoas estão o tempo todo passando na minha frente, porque são elas que estão ajuizando ações e, como o gestor não quer descumprir decisão judicial, ele prioriza quem tem a ordem judicial.""Quando pautamos o acesso a políticas públicas pelo acesso à Justiça, tendemos a causar um grande mal, porque beneficiamos as pessoas que têm mais dinheiro, mais informação", acrescenta. "O que o processo estrutural quer é dar uma resposta, na minha opinião, mais adequada a essas situações", completa.O desembargador reconhece que há críticas e problemas com o processo estrutural. "Estamos tentando contorná-los e estabelecer boas práticas", diz. De acordo com ele, o processo estrutural tenta lidar com esse problema, e não reforçá-lo. "Como? Pensando na ideia de que não podemos pensar em atendimento imediato a todas as pessoas por uma razão simples: não é possível. Não somos capazes, o Brasil é um país grande, com muitas pessoas e pouco dinheiro, e não somos capazes de atender a todas as pessoas ao mesmo tempo."Na entrevista, o desembargador detalhou os principais pontos do anteprojeto apresentado pela comissão na última segunda-feira (16/9) e citou outros exemplos de casos tratados como processos estruturais.
Felipe Recondo: Quais são as características e os pré-requisitos de um processo estrutural?
Essa foi a primeira pergunta que a gente fez na comissão. Precisamos ter uma definição do que é um processo estrutural. Mas quero começar dando um passo para trás para dizer uma coisa. Processo é uma ferramenta. Como qualquer ferramenta, usualmente ela serve para várias coisas. E o modo como ela vai ser utilizada depende muito da aplicação que você vai dar a ela. Tradicionalmente, os processos se desenvolveram como processos individuais, cujo papel era tirar dinheiro de um devedor e entregar dinheiro para um credor. Foi para isso que surgiu o processo na modernidade.
A partir do momento que os conflitos avançaram, a partir do momento que a sociedade foi mudando, todos os países, e o Brasil em 1985, pensaram: 'olha, nós precisamos de uma ferramenta que sirva também para conflitos que têm natureza coletiva'. Em 1985, aprovamos a Lei de Ação Civil Pública, que passou a ser uma nova ferramenta para esses conflitos coletivos. A ação civil pública serve para muita coisa. No desastre de Mariana e no desastre de Brumadinho, as ações propostas para a reparação da coletividade são ações civis públicas. Quando a gente fala em ações de direito do consumidor, por exemplo, planos econômicos, expurgos inflacionários dos planos econômicos, ação civil pública. E quando a gente fala no delicado, e sei que chegaremos nele, tema da intervenção judicial em políticas públicas, às vezes temos também ações civis públicas.
Então, a ação civil pública serve para várias coisas. E ela, nos últimos tempos, alguns autores brasileiros, alguns doutrinadores, alguns teóricos, eu entre eles, começaram a fazer uma discussão de que em determinados casos existem conflitos de natureza coletiva, mas que tem uma característica peculiar, que é a necessidade de que a solução desse conflito se dê de forma futura, então de forma prospectiva, de forma gradual e de forma duradoura.
São conflitos que não se solucionam de maneira instantânea. Então, repare bem, quando você tem a morte de 272 pessoas no desastre Brumadinho, quando a gente pensa numa ação coletiva que busca indenização, você tem uma providência ali que é instantânea, você vai tirar dinheiro da causadora do dano e vai entregar para essas pessoas.
As medidas indenizatórias são instantâneas. Agora, pense na situação que foi diagnosticada pelo Tribunal de Contas da União, de que a Agência Nacional de Mineração (ANM, levaria dez anos para fiscalizar duas vezes cada barragem de mineração, porque a ANM estava completamente desestruturada naquele momento. Se a gente quiser mudar essa realidade, não dá para fazer isso instantaneamente, porque não é apenas uma questão de tirar dinheiro de um lugar e colocar no outro.
Pense na questão trabalhista. Empresas que têm comportamentos que ofendem a coletividade. Não adianta pensar em um processo que vai dar uma ordem imediata. A principal característica do processo estrutural é que ele busca se adaptar para essas situações que exigem medidas prospectivas, graduais e duradouras. E isso é muito diferente do que a gente está acostumado. Porque estamos acostumados a pensar processo como algo que tem que acabar logo e que quanto mais rápido acabar, melhor.
Quem viu essa realidade primeiro foi o Judiciário norte-americano, quando trabalhou a questão da dessegregação racial das escolas depois do caso Brown [quando foi considerado inconstitucional separar os alunos negros e brancos nas escolas norte-americanas]. Os juízes que pegaram esse imenso abacaxi, disseram 'olha, não existe uma ordem judicial que diga: dessegregue e resolva o problema, ou a gente acompanha, ou a gente vai junto, ou a gente não vai resolver o problema'. Então, o que condiciona o processo estrutural é o perfil do conflito.
Agora, ele é uma ferramenta. O modo como ele vai ser utilizado, o tipo de caso que ele vai ser utilizado, depende de quem vai utilizar a ferramenta.
Miguel Godoy: Em que medida o processo estrutural não se confunde com as políticas públicas que ele objetiva corrigir?
O debate sobre a intervenção judicial em políticas públicas é um debate muito antigo no Brasil. Antes de se escrever uma palavra em língua portuguesa sobre o processo estrutural, já se debatiam os limites da intervenção judicial em políticas públicas. Talvez o primeiro grande caso em que isso se tornou nítido foi o julgamento da medida cautelar da ADPF 45, em 2004, quando o ministro Celso de Mello desenvolveu a ideia da limitação da reserva do possível e estabeleceu os cuidados que o Judiciário teria que ter para interferir em políticas públicas.
De lá pra cá, esse debate foi feito e refeito pelo Supremo Tribunal Federal, pelo STJ, e acho que pelo Judiciário como um todo, em várias instâncias, em vários contextos. Vou dar aqui dois exemplos de casos que acho que são muito importantes. O primeiro é a atuação do Supremo no Tema 548, que é a questão do acesso às creches e à pré-escola. Esse é um tema em que o Supremo Tribunal Federal debateu milhares de ações individuais, que existem no Brasil, não é sequer ação coletiva, e que pedem acesso a uma vaga em uma creche. A questão é, quando milhares de pessoas pedem acesso a uma vaga em uma creche, você passa a ter uma demanda de milhares de vagas em talvez dezenas ou centenas de creches. Depois, no Tema 698, o Supremo debateu o problema dos hospitais públicos, um hospital específico no Rio de Janeiro que não tinha condição de atendimento. E aí o Supremo disse como o Judiciário pode ou não pode interferir nesse tipo de política.
Então esse debate já foi feito em inúmeros contextos e, independentemente de haver ou não haver uma lei sobre o processo estrutural no Brasil, ele certamente continuará a ser feito. Ele é um debate muito delicado, tem muitas nuances dependendo das circunstâncias, mas a minha proposta é a seguinte, não dá para a gente fazer primeiro uma escolha das decisões que a gente não gosta e dizer que, portanto, a intervenção é ruim, e nem fazer uma escolha das decisões que a gente gosta e dizer, portanto, que a intervenção é boa.
Eu acho que você vai achar um pouco de tudo, no universo da intervenção judicial em políticas públicas. Você vai achar decisões de fato ruins, que são intervenções desorganizadoras, mas também você vai achar intervenções muito positivas diante de determinados contextos. A gente viveu alguns contextos difíceis nos últimos anos em que a intervenção judicial provavelmente evitou situações efetivamente desastrosas.
A gente tem que comparar o mundo num universo finito no qual ele existe. Então, quais são as alternativas? Não adianta a gente comparar a realidade que existe com o modo idealizado como a gente gostaria que fosse. Então, quais são as alternativas possíveis? A primeira é dizer, o Judiciário não intervém em nada e deixa o Legislativo e o Executivo tocarem o barco das políticas públicas.
Por que essa é uma alternativa complicada? Porque nós temos uma Constituição que estabelece direitos para as pessoas. E nós achamos que direitos devem ser exigíveis. Então, você dizer que o Judiciário vai lavar as mãos é um problema porque você vai transformar um grande pedaço da nossa Constituição em letra-morta. Até que um dia alguém queira resolver o problema daquelas pessoas. Então, eu tenho dificuldade, do ponto de vista teórico, de dizer que uma coisa que não é exigível é um direito.
Segunda alternativa: vamos permitir, então, que todo mundo proponha sua ação individual, mas não vamos fazer nada no coletivo. Essa é uma intervenção fortemente desorganizadora da política pública, porque só quem tem acesso à Justiça passa a acessar a política pública.
Terceira opção é uma ação coletiva para atender todo mundo. Mas aí vem o problema. Como atender todo mundo de uma vez se não existe capacidade para atender? É o problema das creches.
O que é o processo estrutural? Uma quarta alternativa. É dizer: olha, em vez de a gente fazer as três anteriores, vamos fazer o seguinte, vamos sentar todo mundo, bolar um plano e fazer uma intervenção gradual, futura e progressiva para a gente atender esses direitos. Ou seja, para a gente não deixar esses direitos sem nenhum atendimento, mas também para a gente não cair na banalidade de só conceder ordens individuais a quem ajuizar a ação.
E nem no egocentrismo de achar que a caneta cria a realidade, que a caneta judicial é capaz de mudar a realidade, quando ela não é. Tem gente que acha que só faltava mandar resolver. O que a gente percebe, não só na intervenção em políticas públicas, mas em grandes problemas coletivos públicos, é que não falta só mandar. Os problemas são difíceis, são complexos, são intrincados e essas respostas instantâneas tendem a ser ou ingênuas, ou, na pior das hipóteses, hipócritas, porque são decisões que não vão ser implementadas.
O que eu digo para as pessoas que têm resistências ao processo estrutural é, eu concordo, há críticas, há problemas, e a gente está tentando contorná-los e tentando estabelecer boas práticas, mas no universo das alternativas disponíveis, o processo estrutural é a melhor alternativa que a gente tem.
Felipe Recondo: Vemos hoje, especialmente o Supremo Tribunal Federal, mas também outros tribunais, sendo muito criticados por tomarem a frente em questões de políticas públicas. Temos, neste momento, uma decisão do ministro Flávio Dino, por exemplo, que está sendo muito debatida. Fica a pergunta: os tribunais terão a capacidade e o conhecimento para lidar com processos estruturais e políticas públicas?
Essa é uma questão que a gente, claro, tem que trabalhar e muita literatura tem sido produzida no Brasil sobre esse tema. A primeiríssima questão é, quem acha que o mal é esse, exatamente como você o formulou aqui, precisa entender que o processo estrutural é o remédio para esse mal, não é a causa. A proposta do processo estrutural é justamente que o Judiciário não diga o que fazer, mas sim que o Judiciário funcione apenas como o ambiente adequado para a gente romper com a inércia e para que as próprias pessoas, os próprios agentes tomadores de decisão se congreguem para chegar à solução desses problemas complexos.
Eu entendo perfeitamente esse debate, mas o que as pessoas precisam entender é que o processo estrutural não está na causa do problema. Se ele é alguma coisa nesse debate, ele é uma possível solução.
Eu atuei muito antes de vir para o Tribunal, e quando ainda estava no Ministério Público Federal, nos casos de Mariana e de Brumadinho, então eu digo que eu sei muito mais sobre barragens do que eu gostaria, mas mesmo assim, eu sei muito pouco.
Se alguém tem que fazer um plano sobre fiscalização de barragens, não sou eu, não é o Ministério Público, não é o Judiciário. É o agente gestor, que no caso é a Agência Nacional de Administração. Ela tem que fazer, porque quando ela não faz, acontece aquilo que aconteceu em Minas Gerais, em três anos morreram quase 300 pessoas, porque a fiscalização de barragens no Brasil é deficiente. Então, se o Judiciário conseguir fomentar que isso ocorra, ótimo, mas é isso, não é eu pegar e fazer.
Felipe Recondo: O senhor mencionou um ponto importante, que é a capacidade orçamentária de lidar com isso. Em todo processo estrutural, essa questão passa pelo Executivo e pela sua capacidade. Como lidar com esse problema orçamentário?
Mais uma vez, quem compartilha da sua preocupação precisa enxergar o processo estrutural como solução e não como problema. Onde está esse problema? Esse problema está em cada ordem judicial que manda pagar um medicamento que custa R$ 5 milhões por ano para uma pessoa. O problema está dado. Eu estou propondo um tipo de solução. Cada decisão judicial que determina que um município, que o Estado, que a União, pague um medicamento que custa R$ 5 milhões por ano também não diz de onde vai sair esse dinheiro.
O processo estrutural tenta lidar com esse problema e não reforçá-lo. Como? Pensando na ideia de que nós não temos que pensar em atendimento imediato a todas as pessoas por uma razão simples, porque não é possível. O Brasil é um país grande, com muitas pessoas, com pouco dinheiro, nós não somos capazes de atender todas as pessoas ao mesmo tempo. Então, o que nós precisamos? Precisamos planejar.
Agora, também, nós não podemos transformar esse argumento de não há dinheiro num argumento que sirva para justificar qualquer coisa. E para sempre. Ah, não há dinheiro. Quando? Não há dinheiro agora. E ano que vem? E no outro ano? E em dez anos? Quantos anos você precisa para resolver esse problema? Já que, se a gente concorda que isso é um direito, isso tem que ser exigível, pelo menos em algum momento. Então, quem exige o gasto, em primeiro lugar, não é o Judiciário. Quem exige é a Constituição e a lei. Nós temos previsão legal e constitucional e infralegal de todas essas políticas.
Em alguns casos, há exigências que exorbitam aquilo que está previsto em lei. Vamos pensar nos medicamentos não incorporados. Agora, em regra, esse tipo de exigência está lá nos processos individuais, não está no processo coletivo. O problema, usualmente, não é do processo coletivo.
E aí, como que o processo estrutural pretende lidar com isso? Como eu estava mencionando, criando um plano. Esse plano está regulado no artigo 7º da proposta. Qual é a primeira coisa que o plano tem que ter? Um diagnóstico, considerando as informações disponíveis, para que a gente saiba, olha, qual é o tamanho desse problema? Quanto que ele custa? Sem diagnóstico, nós não vamos a lugar nenhum. E o parágrafo 1º desse artigo diz que, sempre que possível, o juiz facultará que a versão inicial do plano seja elaborada pelo sujeito encarregado da própria atividade sobre a qual recai o processo, valorizando o seu conhecimento quanto ao objeto e considerando os obstáculos e as dificuldades reais da implementação das medidas.
Exatamente por causa disso, porque é essa pessoa que sabe onde o sapato aperta, é ela que sabe quais são as dificuldades, é ela que sabe até que ponto dá para avançar ou não dá para avançar nessa política.
Se a gente for pegar aí um processo cultural sobre questão indigenista, a primeiríssima entidade que precisa estar lá é a Funai, porque é a Funai que lida no dia a dia com as dificuldades das comunidades indígenas. Essa é uma questão central. Quem é o segundo grupo tem que falar? Os próprios indígenas, com as suas representações, com as suas lideranças, porque são eles que vivem os problemas no dia a dia.
Miguel Godoy: Como deve ocorrer a participação dos diferentes grupos afetados pela decisão estrutural? É na elaboração do plano de ação? Na aferição dos resultados? Em todas as etapas? E até que ponto a busca por consenso na construção do plano de ação pode ser também contraproducente?
Esse é um desafio que convivemos há anos, e esse é um desafio do qual eu me ocupo há muitos anos. Quando eu escrevi a minha tese de doutorado, o subtítulo original, que depois não foi para a versão comercial, era 'representação, participação e efetividade da tutela jurisdicional'. O processo coletivo tem uma peculiaridade muito anômala. No processo individual, o titular do direito é parte. Então, teoricamente, e isso é bem teoricamente, mas teoricamente, ele contrata o advogado, ele orienta seu advogado, ele diz o que ele quer e, consequentemente, a gente não precisa se preocupar se o Judiciário está concedendo o que ele quer.
O processo coletivo é um pouco diferente, porque como é um grupo, o grupo não está no processo. Quem está no processo é uma entidade que fala por esse grupo e faz quase quinze anos que eu estudo isso, como que a gente pode fazer para melhorar essa situação, que é inevitável, porque eu não tenho como trazer todo mundo para dentro do processo, mas, ao mesmo tempo, não pode significar uma exclusão pura e simples dessas pessoas, porque são elas que vão viver com a decisão depois que a decisão for tomada.
Há algumas estratégias que vêm sendo adotadas em alguns casos. Uma delas, particularmente, já inspirou mudanças legislativas e que a gente poderia pensar. A mais velha e conhecida de todo mundo são as audiências públicas, que têm várias vantagens, mas também têm vários problemas. São eventos difíceis de gerir, que muitas vezes são dominados por grupos de interesses, então muito complicados, mas são alguma coisa. Em vários casos durante a pandemia, em vários grandes processos coletivos durante a pandemia, os legitimados coletivos, nessa época eu ainda estava no Ministério Público, faziam lives com a comunidade para mostrar o que estava sendo feito em um determinado processo e tudo mais.
Nos casos de Mariana e Brumadinho, particularmente, foi adotada uma estratégia cara, porém, boa para essa finalidade, que é a designação de assessorias técnicas independentes, entidades da sociedade civil que são remuneradas pelo causador do dano para atuar como esse elo de participação comunitária, então são pessoas que estão em campo e estão lá trazendo para o processo o que as pessoas pensam e levando para elas o que está acontecendo nos processos.
Essa experiência foi tão bem sucedida que ela foi incluída numa lei estadual de Minas Gerais, inicialmente, e hoje ela está prevista na Lei 14.755/2023, que é a Lei da Política Nacional das Populações Atingidas por Barragens. Então, é uma estratégia, que não dá para usar em todos os casos, porque ela custa muito caro, porque obviamente as pessoas precisam ser remuneradas, mas ela é interessante. Então, o que eu defendi no livro que eu escrevi sobre isso, na minha tese de doutorado, foi que a gente precisa calibrar essas estratégias participativas de acordo com as características do conflito.
Miguel Godoy: Os processos estruturais podem ser desenvolvidos em ações de cabimento restrito, como o habeas corpus, o habeas corpus coletivo, o mandado de segurança?
A nossa proposta da lei parte da premissa de que os processos estruturais são ações civis públicas e, portanto, vão ser originariamente propostas em primeiro grau e vão ser debatidas, vão ser maturadas nessa discussão em primeiro grau e vão ter também o controle de todo o generosíssimo sistema recursal brasileiro. Agora, é fato que hoje existem processos estruturais em diversos mecanismos sendo conduzidos, que ganharam conduções estruturais. No Supremo Tribunal Federal a gente destaca o habeas corpus coletivos da população carcerária e várias ADPFs, que fizeram com que o Supremo criasse inclusive um núcleo para contribuir com os gabinetes na gestão dessas demandas estruturais. Então não há dúvida de que, com a lei ou sem a lei, os processos estruturais estão aí e estão também no Supremo Tribunal Federal.
A nossa proposta na comissão nunca foi fazer um projeto de lei para regular o Supremo Tribunal Federal. A gente está regulando uma proposta de processos estruturais que tramita em primeiro grau. Se ela é ou não é, se ela vai ou não vai servir de inspiração para quem está nos outros graus e tudo mais, é uma questão que o tempo dirá, supondo que ela seja aprovada. Mas a proposta em si não pensa nisso, embora os processos estruturais claramente estejam aí, e nesse mês, inclusive, a revista do Supremo Tribunal Federal, que é a Suprema, a revista científica do Supremo Tribunal Federal, lançou um volume especial só com artigos sobre processo estrutural, tal é a preocupação do tribunal com o tempo.
Felipe Recondo: Há algumas decisões recentes do Supremo em processos estruturais, seja reconhecendo o processo estrutural e solicitando planos, seja decidindo algumas questões posteriormente. Com base nisso, qual processo julgado no Supremo como uma ação estrutural poderia servir como padrão? E complementando essa pergunta: quando o processo estrutural deve ser encerrado?
Essa também é uma boa pergunta. É muito difícil a gente falar de um caso que seja o ideal de processo estrutural, porque os casos são muito diferentes entre si. Então eles são de difícil comparação. Um caso que tem sido bem conduzido no Supremo, que tem boas características para ser um bom caso, é o da ADPF 991, que trata das populações indígenas isoladas e de recente contato.
Teve uma decisão do ministro Edson Fachin que determinou a elaboração de um plano para tratar especificamente dessa população. Por que eu acho que a ADPF 991 é um bom caso para ser conduzido no Supremo? Primeiro, porque as populações indígenas, e muito especialmente as populações indígenas isoladas, são encargo da União. A Constituição é muito clara nisso. Então, você só tem uma pessoa para você debater, que é a União. É a União que precisa dar uma solução para os povos indígenas, especialmente os povos isolados.
Segundo, essa é uma questão que tem poucas variantes regionais a serem consideradas, porque não são todas as populações indígenas, são apenas as isoladas e de recente contato.
E terceiro, você tem um objeto muito focado que é a situação específica dessas populações, que são pequenas, pontuais, etc. E o plano pede também situações bem específicas, de medidas de natureza bem específica. Então, para mim, esses são bons indicadores de situações em que o Supremo Tribunal Federal tem potencial para fazer uma boa atuação.
É claro que uma coisa é uma ordem do juiz primeiro grau, outra coisa é uma ordem do Supremo Tribunal Federal, uma coisa é uma intimação para participar de uma audiência de um juiz primeiro grau, outra coisa é do Supremo Tribunal Federal.
Miguel Godoy: Hoje, no Supremo, temos um processo estrutural de combate aos incêndios ambientais e outro relacionado ao estado de coisas inconstitucional da população negra. O Poder Executivo Federal e os estados têm secretarias específicas para esses temas. Por que o Supremo teria mais capacidade de resolver esses problemas do que o Poder Executivo?
Você está se referindo à ADPF relacionada ao racismo, a ADPF 973. Esse é um caso que, de fato, tem pouco potencial, na minha opinião, para dar bons resultados, exatamente por essas características que a gente mencionou. É um caso amplo demais que tem peculiaridades locais demais e assim por diante. Então, eu acho que esse é um caso difícil. Agora, esse é um caso que o Supremo ainda efetivamente não assumiu. A ação foi proposta, mas o Supremo não mandou fazer nada ainda nesse caso. Teve sustentação oral e ainda não teve uma decisão.
A minha opinião, enquanto acadêmico, enquanto estudioso e publicada no periódico do próprio Supremo, é que esse é um caso em que o potencial de solução é muito baixo nessa ADPF. Não sei o que o Supremo fará. Acho que a gente precisa entender um pouco isso, o fato de alguém propor uma ADPF não significa necessariamente que o Supremo vá pegar essa causa e transformar num processo estrutural e conduzi-la como um processo estrutural.
Eu faço uma analogia com a ADPF que foi proposta para que o Supremo determinasse que fosse feita uma reforma tributária que acabasse com a regressividade tributária. Regressividade tributária é um problema sério do nosso Direito Tributário? Gravíssimo. É um problema estrutural? Sem dúvida que é. O que o Supremo fez? Dise isso não é comigo. Ministra Carmen Lúcia indeferiu, considerou que não havia legitimidade ativa, não houve recurso dessa decisão monocrática e o processo foi baixado. Então, esse foi um caso que, apesar de ter sido proposto com esse viés estrutural, o Supremo não pegou.
Felipe Recondo: Inclusive, no seu artigo, você menciona que o Supremo talvez devesse escolher as batalhas que vai querer travar. Retomando esse ponto e aproveitando o gancho da decisão do ministro Flávio Dino, que permitiu a abertura de crédito, mas deixou claro que isso não interfere na meta fiscal, seu texto pode evoluir no sentido de definir que o processo estrutural não deveria, ou não pode, interferir em realidades orçamentárias?
Vamos começar pela questão da ADPF 473 e suas irmãs, porque são várias que foram reunidas. O que aconteceu nesse caso? Esse é um caso peculiar que realmente precisa ser bem entendido. Esse caso já foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal. E quando ele foi julgado, o Supremo determinou que a União elaborasse um plano de prevenção e combate aos incêndios no Pantanal e na Amazônia, que abarque medidas efetivas e concretas para controlar ou mitigar os incêndios que vêm ocorrendo e prevenindo novas devastações. Esse julgamento aconteceu em março de 2024. Então, essa é uma decisão tomada e final do Supremo Tribunal Federal, a de elaboração de um plano. O Supremo estava pensando na realidade dos anos anteriores, não nas queimadas que a gente está vivendo agora quando tomou essa decisão.
Essa é uma decisão estrutural. A União tem que planejar mecanismos de combate a incêndio. E assim, precisava o Supremo dizer isso? Não, o artigo 225 da Constituição já diz. Agora, como isso não aconteceu e as queimadas estão aí, é aquela velha história, né? Nós vamos esperar queimar tudo para mandar fazer alguma coisa? Então, se mandou que se fizesse um plano para levar em conta a situação e solucioná-la. Ok, até aí, processo 100% estrutural.
Começou a implementação, elaboração do plano, vamos discutir o que fazer, porque tudo é queimada, mas cada localidade tem suas peculiaridades, tem causas distintas, tem realidades distintas, biomas distintos, fragilidades distintas a incêndio. Então, é um caso bem difícil também. E não é só a União. Embora a decisão que transitou determinou à União, essa é uma medida que depende de município, depende de estado. Então, esse é um caso realmente muito delicado.
Mas a decisão que foi tomada pelo Supremo Tribunal Federal em março é uma decisão estrutural. Só que o que aconteceu no meio da implementação dessa medida? É uma crise, uma situação aguda de incêndios como o Brasil nunca viveu. E aí o ministro Flávio Dino, então, adotou algumas decisões que elas próprias são apenas decisões daquilo que a gente chama, tecnicamente, de tutela provisória. Ou seja, são ordens. São ordens para debelar um problema pontual, específico, circunstancial. Elas não têm nada a ver com o plano que está sendo discutido lá. E essa, sim, é a medida.
Felipe Recondo: Ou seja, uma crítica que se faça a essa decisão não deveria estar anexada ou acoplada ao debate de processo estrutural?
Perfeitamente, é exatamente isso. Então, ok, quem discorda dessa decisão, e eu não estou aqui nem concordando, nem discordando, mas quem discorda dessa decisão que discorde. A questão é: esta é uma decisão que nada tem a ver com o processo estrutural. Não é isso que o processo estrutural propõe, não é para isso que ele serve. O processo estrutural não serve para debelar crises agudas e pontuais. O que serve para debelar crises agudas e pontuais é exatamente o que foi usado agora, as medidas de tutela provisória que estão previstas lá no Código de Processo Civil, nos artigos 294 e 311, que servem para qualquer processo individual, coletivo, estrutural. Serve para qualquer processo. Então, assim, eu realmente acho que esse é um ponto importante.
A gente tem que ter dois cuidados aqui. Primeiro, para não usar o discurso do processo estrutural como uma espécie de justificativa de coisas que não são estruturais. Então, para dizer que é bom porque é estrutural, né? Não é porque é estrutural que é bom. Então não vamos usar o processo estrutural para justificar aquilo que a gente quer que seja bom. E segundo, não vamos também incorporar ao processo estrutural problemas que são de outros universos.
O problema da tutela provisória que determina gasto, da tutela provisória que determina medidas difíceis de implementar, é um problema de tutela provisória. Não é um problema de processo estrutural. Pelo contrário, as tutelas provisórias de processo estrutural não têm esse perfil. Elas são graduais, progressivas, futuras, incrementais. Elas estão preocupadas com outras realidades, não com esse tipo de realidade. Agora, repare mais uma vez, também não é um problema propriamente só desse caso. O juiz de primeiro grau que manda comprar um medicamento que custa R$ 1 milhão. É exatamente o mesmo problema.
Agora, o problema é que a realidade é dura. A realidade insiste em ser dura. Quem vai olhar, e esse é o desafio que o Judiciário tem passado nos últimos anos, quem vai olhar nos olhos do pai e da mãe da criança de 4 anos que tem uma doença gravíssima e que precisa de um medicamento que custa R$ 1 milhão de dizer, nós não vamos conceder. Não vamos conceder. E veja, é isso que tem que ser feito. A minha opinião é que é isso que tem que ser feito. É isso que a Inglaterra faz, por exemplo. Não concede. Houve um caso, inclusive, de um bebê inglês que teve uma situação muito parecida com essa. Houve processo judicial e o Judiciário inglês disse não vamos conceder. Ok. Mas essa é uma crise que a gente vive nos últimos anos e que a gente não conseguiu ainda saber qual é o nosso ponto, inclusive ético, de concessão e negativa dessas medidas. Então, essa é uma discussão muito ampla, que não dá para pegar um caso e tentar estabelecer uma regra geral. Ah, então não pode dar uma ordem judicial que manda gastar dinheiro. Se não pode, então não pode dar o medicamento então não pode dar a vaga em creche, porque tudo isso custa dinheiro. Então, o problema é que a realidade é multifacetada e ela pretende, e ela abarca casos, uns que a gente gosta, outros que a gente não gosta. E aí a gente vai ter que achar o meio-termo dessas questões. Então, o processo estrutural certamente se preocupa com a questão orçamentária. E essa questão tem que estar incorporada ao plano.
E é por isso que o plano é gradual, exatamente para que a questão orçamentária, uma vez incorporada ao plano, possa fazer parte do planejamento de quem quer que seja, público ou privado, porque o privado também tem que saber quanto ele vai gastar, orçamento não é só um problema público, é um problema particular também, para que progressivamente as soluções surjam e sejam implementadas.
Miguel Godoy: Os processos estruturais no Supremo, hoje, são definidos como estruturais por uma decisão monocrática do ministro relator. Quase não há participação ou controle do plenário, que, quando ocorre, se resume a homologar ou não algumas decisões tomadas pelo relator. Pensando no desenvolvimento de um processo estrutural no âmbito dos tribunais, não deveria haver participação e controle prévio do plenário sobre o que é ou não um problema estrutural?
Você é um estudioso do Supremo muito maior do que eu, Miguel, mas o que eu poderia dizer, mais uma vez, é que esse não é um problema do processo estrutural. Isso é uma situação que acontece recorrentemente em diversos outros casos, estruturais ou não. Ou seja, a discussão sobre a colegialidade, não só no Supremo Tribunal Federal, mas nos tribunais, de uma forma geral, é uma discussão que perpassa a atuação dos tribunais, não especificamente os processos culturais. Eu tendo a concordar com você. Eu acho que quanto mais grave é o caso, quanto mais delicado é o caso, mais o colegiado deveria se apresentar como a instância deliberativa.
Acho que no dia a dia é muito difícil se fazer uma condução colegiada de processos, né? Então, eu acho que aquela condução do dia a dia, ela tende a ser, em qualquer processo em tribunal, em qualquer processo em órgão colegiado, ela tende a ser monocrática. A condução da instrução, dos atos participativos, etc. Agora, nesses momentos cruciais, o plenário precisa se apresentar e precisa ser a instância. Eu realmente não sou a pessoa talvez mais indicada para dizer se isso deve ser feito antes, depois, etc. Mas eu acho que, como integrante de um colegiado, quanto mais importante a causa, mais importante que o colegiado contribua para a participação, contribua com a divisão da responsabilidade. Então, acredito que isso é fundamental.
Felipe Recondo: Queria que o senhor explicasse como o tribunal lidaria com cada processo, se seria criado um colegiado para cada?
Esse é um ponto ótimo. Essa é a minha visão sobre colegialidade e eu acho muito importante que a gente tenha colegiados. O juiz de primeiro grau, ele é naturalmente solitário, porque ele não integra um colegiado. O que a gente está prevendo no projeto? Uma providência análoga àquela que já existe na Lei 12.694/2012, da execução penal, que é o colegiado de primeiro grau. É a possibilidade, não é obrigatório, mas é a possibilidade de que se forme um colegiado técnico também no primeiro grau, justamente porque esses processos são muito complexos, têm muita responsabilidade. Você pode ter vários métodos de trabalho com esse colegiado. Você pode, eventualmente, dividir frentes de trabalho ali e cada juiz cuidar de um aspecto daquele processo. Ou você pode também, em vez de dividir frentes, fazer votações.
A lei não regula como esse colegiado vai funcionar. Tal como a lei de execução penal também não regula os colegiados de execução penal, quem regula são os próprios tribunais, mas eu acho que isso abre um mecanismo muito interessante para que a gente tenha, em grandes casos, colegiados também em primeiro grau e mais do que isso, para que o processo estrutural seja um problema institucional.
Miguel Godoy: A Comissão de Juristas do Senado Federal, da qual você é relator, acabou de apresentar o relatório preliminar do anteprojeto sobre o processo estrutural. Diante das experiências que temos tido, quais são os pontos de regulação do processo estrutural que você destacaria nesse relatório preliminar que apresentou?
O texto não é longo, são só 10 artigos, mas ele é um texto bastante denso. Então eu vou tentar destacar aqui alguns pontos. Acho que o primeiro e o segundo a gente já tratou, que são o conceito de processo estrutural e quais seriam as normas fundamentais do processo cultural. O terceiro é esse que eu acabei de mencionar, a institucionalização do processo estrutural pela via de uma organização mais adequada da competência, da distribuição de competências entre juízes e tribunais. O terceiro é um ponto bem delicado e que também atraiu muita discussão na comissão, acabou que a gente não passou por ele, que é a questão da definição do objeto do processo estrutural.
Então, o processo estrutural busca um equilíbrio muito delicado entre fluidez, porque a realidade muda, mas também entre fim. Quando que ele acaba? O projeto tem uma estratégia para isso, que é dizer o seguinte: tem que haver uma decisão judicial no início do processo estrutural, início não é tão início assim, no início depois de ouvir todo mundo, depois de integrar um contraditório adequado, que especifique qual é o objeto do processo estrutural. E uma vez que esse objeto seja definido, a única forma que ele pode ser alterado é por acordo entre as partes. O juízo não o altera mais. E aí o que garante que ele acaba? Ele tem um objeto definido. A partir daí, o que a gente vai ter? Metas e indicadores dentro desse objeto. As metas e indicadores são alteráveis? São, claro, porque a realidade se altera. Então, se hoje eu preciso de dez fiscais para fiscalizar uma barragem, pode ser que amanhã surja uma tecnologia de fiscalização via satélite que eu não preciso mais de dez, eu preciso de dois. Agora, o objeto, não. Eu não posso pegar uma ação que é sobre fiscalização de barragens e dizer, ah, quer saber de uma coisa? Agora que as barragens estão bem, vamos falar de fiscalização da atividade minerária como um todo? Vamos falar de ouro? Vamos falar de diamante? Vamos falar de lítio? Opa, isso aqui é um processo sobre barragens. Quer propor um processo estrutural sobre ouro? Maravilha, é outro processo. Nesse, não.
Então, a fixação do objeto da atuação estrutural, me parece que é a principal garantia de que esse processo será finito. Essa decisão é passível de controle, é passível de recurso para que os insatisfeitos se manifestem, mas uma vez fixado, esse objeto vai ser o que vai guiar o processo estrutural. A partir daí se faz o plano, que eu também já mencionei aqui um pouquinho, se viabiliza a participação com reuniões, com audiências públicas, consultas técnicas, consultas comunitárias e assim por diante, e a gente busca, a partir daí, a construção de um consenso.
O projeto fala em consenso diversas vezes. Claro que, como qualquer processo, se o consenso não chegar, vai ter que ter uma decisão, mas o projeto determina que o juiz seja um agente facilitador do consenso na medida do possível. Quando ele regula a decisão, inclusive, ele tem uma disposição da qual eu gosto bastante, que diz o seguinte: nas questões em que o consenso não for possível, o juiz deve adotar decisões parciais ou provisórias, preferencialmente, devolvendo às partes a oportunidade de escolher novos meios de efetivação da tutela, de produzir novas diligências e de modo a complementar os espaços decisórios que não sejam exauridos. Eu chamo isso no meu livro de decisões minimalistas, fazendo lá uma analogia com o Cass Sunstein. Decida o mínimo possível para você poder destravar a pauta das negociações.
Por que eu gosto de consenso do processo estrutural? Por um aspecto muito importante. Porque se a medida não for minimamente consensual, ela não será duradoura. Então, não é que eu seja bonzinho, pelo contrário, eu só sou prático. Se a gente tiver uma medida que é imposta, na hora que o Judiciário virar as costas, a situação volta a ser o que ela era antes. E aí nós vamos ter o ajuizamento de uma nova ação. Os bons processos estruturais são aqueles que conseguem construir valor compartilhado e permitir que o réu entenda que aquilo é bom para ele também. Porque se ele assumir aquilo como uma meta dele, aquilo vai ser duradouro. Se isso for só uma imposição que o Judiciário vira as costas, essa situação tende a voltar.
E aí, como é a última pergunta, eu vou tomar a liberdade de fazer uma última observação para ficar aqui e registrar. Repare que a maior parte dos processos estruturais, não todos, mas uma boa parte dos processos estruturais, e sobretudo os que envolvem políticas públicas, mas não apenas, envolvem questões que já foram muitas vezes tratadas em muitos processos individuais. Saúde, educação, etc. E, ao contrário do que os críticos parecem querer entender, essas intervenções individuais são, lamentavelmente, as mais iníquas, porque elas prestigiam as pessoas que têm acesso à Justiça, em detrimento de quem está na fila esperando tranquilamente.
Então, quero contar um caso de um litígio estrutural que a Justiça Federal vive atualmente. O INSS não tem capacidade hoje para analisar todos os requerimentos de benefícios à Previdência Social. Ponto. Não tem. Isso está muito atrasado. É um problema estrutural? É. Por que o INSS não tem essas capacidades? Porque várias pessoas se aposentaram, porque não fez concurso e tudo mais. O que começou a acontecer? As pessoas começaram a impetrar mandados de segurança individuais e dizer 'eu quero que o meu requerimento seja analisado, porque o prazo legal já foi extrapolado'. O que o Judiciário começou a fazer? Ok, tem um prazo legal, não tem? Toma, analisa esse requerimento. E assim se fez. Quando a gente faz isso uma vez, parece pouco, mas quando a gente faz isso milhares de vezes, o que acaba acontecendo é que a gente muda a ordem da fila. E a fila começa a andar para trás, porque ou eu ajuízo uma ação, ou as outras pessoas estão o tempo todo passando na minha frente, porque são elas que estão ajuizando ações e que, como o gestor não quer descumprir decisão judicial, ele quer passar na frente quem tem a ordem judicial.
Então, quando a gente pauta o acesso a políticas públicas pelo acesso à Justiça, a gente tende a fazer um grande mal, porque a gente beneficia as pessoas que têm mais dinheiro, que têm mais informação, que têm acesso a advogado, que podem pagar um advogado, ou que sabem que isso é possível, em detrimento das pessoas que estão cumprindo a regra do jogo, que são aquelas pessoas que foram à administração, que estão esperando na fila. O que o processo estrutural quer é dar uma resposta, na minha opinião, mais adequada a essas situações.
Então, partindo de um mundo finito e de alternativas que estão na mesa, eu acho que a carta do processo estrutural é muito melhor do que o que a gente fez até aqui nos casos que são efetivamente estruturais, não nesses que estão aí rotulados indevidamente. Eu ainda não encontrei alternativa que responda melhor a essas situações do que o processo estrutural. Pode ser que alguém encontre, mas por enquanto eu acho que o processo estrutural traz muitas soluções para muitos problemas que a gente vem vivendo nos últimos anos.
Fonte: Jota