A Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF6), por unanimidade, reformou integralmente a sentença proferida pelo Juízo da extinta 8ª Vara Federal da Seção Judiciária de Minas Gerais (atual 1ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de Belo Horizonte), que deu provimento ao mandado de segurança impetrado pelo estabelecimento recorrente, determinando que a União se abstivesse de fiscalizar ou autuar o empreendimento, garantindo-se a comercialização ou oferecimento de bebidas alcoólicas no local situado às margens de rodovia federal.
A sentença de 1º grau foi além: antes de conceder a segurança, declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei 11.705/2008 (conhecida como “Lei Seca”), que proíbe a venda de bebidas alcoólicas em estabelecimentos situados na chamada faixa de domínio das rodovias federais.
Coube ao desembargador federal Dolzany da Costa, relator da apelação da União, iniciar seu voto enfrentando uma questão jurídica delicada: a declaração incidental de inconstitucionalidade proferida na sentença recorrida. Somente após essa análise, foi possível discutir o mérito da ação.
Mas, afinal, qual o significado da “declaração incidental de inconstitucionalidade”?
Neste ponto, é importante esclarecer ao leitor o que significa a “declaração incidental de inconstitucionalidade” e, consequentemente, o que se entende por controle incidental de constitucionalidade. Além disso, convém explicar também o conceito de controle concentrado de constitucionalidade, diferenciando os dois mecanismos de verificação da compatibilidade das normas com a Constituição.
O controle concentrado de constitucionalidade é aquele sem relação direta com qualquer caso concreto. Simplificando, “caso concreto” é aquela demanda que um cidadão comum apresenta numa ação e no qual a questão principal não tem a ver, propriamente, com controle de constitucionalidade.
Somente o Supremo Tribunal Federal (STF) pode fazer este controle concentrado de constitucionalidade (a discussão, por isto, fica “concentrada” no STF), onde a questão apresentada limita-se a temas relacionados diretamente ao texto constitucional e cujo pedido de análise ao Supremo é feita apenas por determinadas instituições públicas e privadas, ou agentes públicos de relevância, todos previstos somente no art. 103 da Constituição Federal.
Já o controle incidental de constitucionalidade (também chamado controle difuso) só se realiza em demandas comuns propostas por qualquer pessoa e em qualquer juízo (dos juízes de 1º grau aos ministros do STF).
Contudo, neste controle incidental, a discussão de constitucionalidade não é a questão principal do processo, mas uma discussão antecedente (e, por isto, “incidental”) que precisa ser necessariamente analisada, antes do caso concreto. Ou seja, é indispensável que a questão incidental de constitucionalidade seja resolvida previamente, para que só depois seja possível a discussão e decisão, no mesmo processo, da questão principal, relativa ao caso concreto.
A decisão do TRF6 neste caso
Feitos estes esclarecimentos, passemos à análise do julgamento no TRF6, quanto à apelação da União.
O desembargador federal Dolzany da Costa explica que o Juízo de 1º grau declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei nº 11.705/2008, que proibia a venda de bebidas alcoólicas em estabelecimentos localizados na faixa de domínio das rodovias federais, e, em seguida, concedeu a segurança em favor da empresa apelada, determinando que a União se abstivesse de fiscalizar ou autuar [significa a constatação de suposto ato legal, gerador do auto de infração] o empreendimento pela comercialização ou oferecimento de bebidas alcoólicas em seu estabelecimento localizado na rodovia.
Contudo, o relator afirma que a questão a aplicabilidade do art. 2º da Lei nº 11.705/2008 já foi decidida pelo STF há pouco mais de 2 anos na ADI (ação direta de inconstitucionalidade) nº 4017, já transitada em julgado, concluindo o Supremo Tribunal Federal pela constitucionalidade da referida norma, assegurando sua plena validade e aplicação pelo Poder Público.
Sobre a ADI nº 4017, o desembargador federal destacou o entendimento adotado pelo STF em sua decisão histórica, que reafirmou o propósito da Lei nº 11.705/2008 de reduzir acidentes e mortes em rodovias federais. A Suprema Corte baseou-se em diversos estudos científicos e estatísticos para fundamentar o julgamento. Entre os trabalhos citados, um dos mais relevantes foi mencionado no voto do ministro relator Luiz Fux: um estudo publicado na renomada revista científica de medicina The Lancet, conhecida mundialmente por suas pesquisas, incluindo aquelas sobre a pandemia de COVID-19.
O estudo analisou dados de 195 países e territórios no período de 1990 a 2016, concluindo que o consumo de álcool foi, em 2016, o sétimo principal fator de risco para mortes e incapacidades no mundo. Nesse ano, o uso de álcool esteve associado a 2% das mortes femininas e 6,8% das mortes masculinas.
Outro estudo considerado pelo Supremo foi a Pesquisa Nacional de Saúde, realizada pelo IBGE em 2019. O levantamento revelou que cerca de 26,4% dos brasileiros com mais de 18 anos consomem bebidas alcoólicas pelo menos uma vez por semana, indicando um aumento significativo no consumo de álcool no país. Esse crescimento torna-se ainda mais evidente quando comparado aos dados do Relatório Global sobre Álcool e Saúde – 2018, divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Assim, o desembargador federal do TRF6 concluiu que o entendimento do juízo de 1º grau ‘(...) está em conflito com o entendimento firmado pelo STF na ADI nº 4017 ; portanto, razão assiste à União, merecendo ser a sentença reformada, nos termos do art. 927, I do CPC c/c o parágrafo único do art. 28 da Lei 9.868/99 (...)”, O que significa que o empresário está proibido de vender bebidas alcoólicas em seu estabelecimento situado em rodovia federal, sujeito à autuação pelo Poder Público e a outras sanções previstas em lei.
Processo n. 0011176-76.2008.4.01.3800. Julgamento em 21/10/2024.